Caçadores de água
Por: Liliana Peixinho*
No planeta Terra, onde a
água predomina, o Homem passou a caçar o maior bem da vida, cuja abundância, desproporcional
ao descaso, compromete a existência, em suas múltiplas formas. No Brasil,
região como o Nordeste, historicamente castigado, os reservatórios diminuem.
Nascentes do Cerrado, que alimentam a Bacia do rio São Francisco, são
degradadas em meio ao ritmo acelerado do agronegócio.
Eventos climáticos
desregulam as chuvas. No Sul, a chuva inunda, no Nordeste, o Sol esturrica a
terra. As áreas de desertificação no semiárido brasileiro atingem cerca de meio
milhão de pessoas, em 20 mil km quadrados de solo espalhado entre o Piauí,
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco. O cenário se complica com o
alastramento da desidratação numa área de 230 mil quilômetros quadrados,
degradada, ou em alto risco de degradação. Equivalente a mais que todo o estado
do Ceará.
O Engenheiro Agrônomo, Nizomar
Falcão, nessa entrevista especial e exclusiva, aprofunda,
cientificamente, em linguagem acessível, os múltiplos problemas que envolvem:
acesso, desperdício, gestão, relação comunitária, domínio capital, fontes
alternativas para preservação de matrizes, em contextos de demandas reprimidas
históricas, para a garantia da água, como direito básico. De forma
transparente, corajosa, linkada aos grandes desafios de preservação da vida,
planeta afora, o diálogo entre um professor e uma jornalista, especializados em
foco socioambiental, traduz inquietações, revela compromissos e denuncia
gestões tortas, em cursos d’água.
Nascido em Mossoró, Rio Grande do
Norte, o professor é desses
nordestinos típicos, de nos orgulhar ( com sua licença aqui pra
valorizar a fonte). Homem simples, tranquilo, corajoso, fala mansa, olhar reto,
o engenheiro saiu do Brasil para aprofundar sua paixão pelos estudos sobre água
e seus múltiplos sentidos de vida, em Milão, Itália. Com a sapiência de um
eterno pesquisador, curioso, disciplinado, o engenheiro, que também é escritor,
nos brinda, de forma generosa, com informações inéditas, contexualizadas em
valores profundos sobre uso, controle e desafios do maior bem da vida: a água.
De forma séria, e em compromisso com
pautas em desafio mundial, ele nos acompanha Brasil e mundo afora, como um
caçador de água. Estivemos juntos, em companhia de
dezenas de especialistas de 36 países, reunidos em Fortaleza, Ceará, entre 21 e 26 de novembro de 2015, ano
marcado por crimes ambientais gigantes como: o rompimento da Barragem da
Samarco/Vale, e seu mar de lama devastando vidas sobre o rio Doce e cidades de
Minas Gerais, Espírito Santo e sul
da Bahia; os incêndios devastadores de ecossistemas da Chapada Diamantina;
assassinato e perseguição a centenas de ambientalistas; escândalos de desvios
de recursos de obras polêmicas no rio São Francisco, e um rosário de problemas
em cadeias desarmoniosas.
O estado do Ceará foi palco mundial de
debates sobre água, em evento que reuniu o O2 Encontro Intercontinental sobre a Natureza,
Diálogos sobre Governança da água e, Encontro Internacional de jornalistas especializados
em Meio Ambiente. Países como
Canadá, África do Sul, Espanha, Chile, México, Suécia, Argentina, Brasil, e
dezenas de outros, participaram de trabalhos que
mobilizam o Brasil e o planeta Terra, em busca de soluções para garantir a
vida.
Autor de diversos livros sobre água e seus contextos de
vida, o cientista Nizomar fez exposição sobre desafios e caminhos da água para
a preservação da vida.
Nizomar explicando como se dá a formação de áreas de desertos no Nordeste Brasileiro
Como um
dos expositores do mega evento intercontinental, o nosso entrevistado, Nizomar
Falcão, chama atenção como um cientista onde a informação vem como carga leve
da experiência em campo aberto, agregadora em imagens reais. Estudioso eterno
de um problema que conhece de perto, como nordestino e morador do Ceará, o
engenheiro tem currículo rico, e coloca em prática o que aprendeu como: PhD em
Antropologia da Contemporaneidade (Universidade de Milão - Itália); Mestre
em Agronomia – Fitotecnia pela Universidade Federal Rural do Semiárido;
Especialista em Gestão Pública pela Universidade Estadual do Ceará (Uece);
Especialista em Irrigação e Drenagem pela Universidade Federal da Paraíba; e
Engenheiro Agrônomo pela Escola Superior de Agricultura de Mossoró). Autor de
diversos livros como:” Além do Assistencialismo: da pobreza a
reciprocidade”, “ Extensão Rural: simulacro de educação rural como estratégia
de desenvolvimento”, “ Espírito dos das Águas: progresso e harmonia social”,
“Água e Desenvolvimento Sustentável”, e “ Reciprocação: desenvolvimento e
exclusão no semiárido brasileiro”, Nizomar escreve com foco em compromisso com
experiências in loco, nas próprias comunidades alvo de seus trabalhos.
Pesquisas que inspiram confiança, credibilidade, sustentadas em práticas onde a
comunidade é sempre o foco principal.
Destaques da entrevista
A água usada pelos índios, in natura,
antes da chegada da “civilização” era um bem da natureza, tornou-se uma
mercadoria pelas ações antrópicas. Ao se fazer esta transição, quebrou-se uma
regra universal: aquela na qual os rios e as florestas eram sagradas e possuíam
altíssimo valor, mais não tinham preço. Com a degradação dos bens naturais, a
água adquiriu um valor de troca e incorporou a precificação. A eficiência tem a
ver com competência técnica. A equidade com decisão política.
E chegou a “ civilização” ameaçando o cuidado nativo com a
pureza d’água
A operação da polícia federal “Vidas
Secas” revela que o discurso inflamado de transposição das águas do rio São
Francisco, para o Nordeste setentrional, é apenas uma falácia. O que parece é
que por trás desta “panaceia” existe um grande “lobby” de consultores,
empreiteiras e políticos desonestos. O conluio de autoridades com estes grupos
de pressão influenciam os espaços decisórios dos profissionais do poder
público, que aprovam aditivos aos contratos em desacordo com as finalidades
técnicas. Estes aditivos superfaturados embutem os recursos destinados aos
enriquecimentos ilícitos e ao financiamento de campanhas eleitorais. É a
indústria da seca renovada, reinventada. Deste modo é uma conspiração que penaliza,
não somente as pessoas que precisam da água das bacias doadoras, mas também das
bacias receptoras, que tem que pagar um preço abjeto.
Obras abandonadas, em 2013-
Sertânia (Pernambuco). Desperdício de recursos
O modelo cultural e
produtivo dominante foi até agora centrado simplesmente na identificação do
“desenvolvimento” (modelo de progresso baseado na exaustão dos recursos
naturais), com o crescimento dimensional quantitativo, no qual se enfatiza a
escassez e as necessidades, sempre de forma superestimadas, como forma de obter
mais recursos hídricos. Não existe uma busca por geração de produtos menos
consumidores de água, mais por mais água, não importando a que distância ela
esteja, fazendo com que sejamos eternos caçadores de água.
Floresta ‘palito” monocultura capital devastadora
Eventos catastróficos
como o que aconteceu no rio doce é o efeito colateral do “desenvolvimento”. Os
governos, na sua ânsia, de promoção do “desenvolvimento” acabam permitindo ou
relaxando nas medidas de segurança, protetivas e mitigatórias. Acabam
permitindo construção de barragens ou outras obras de engenharia em locais de
perfil geológico incompatível.
Os processos naturais e
as atividades humanas, mediante modificações calamitosas da superfície
terrestre, exercem pressões insustentáveis sobre o ambiente. Os estudos de
impacto ambiental acabam sendo desleixados no tocante às medidas de prevenção e
mitigação.
O cuidado dispensado a
estes aspectos deve estar inserido no contexto do progresso sustentável de cada
território. Deve ser um modelo que se baseie no princípio de integração entre
ambiente e progresso, orientado a obter critérios de equidade, precaução,
prevenção, partilha das responsabilidades, reciprocidade ambiental e
participação. O uso dos recursos naturais deve ser parcimonioso, especialmente,
daqueles não renováveis, de modo a não danificar de maneira irreversível o
patrimônio natural ou cultural. Responsabilização e participação devem serem
compreendidos como métodos de educação.
Vidas perdidas em mar de lama rio Doce abaixo.
O potlatch é o fenômeno
cultural mais relevante. Era uma cerimônia dos índios americanos, na qual se
praticava uma troca agressiva e perdulária de bens. Uma destruição ritual de
bens acumulados como forma de demonstração de superioridade. A superioridade
estava em não possuir valores maiores que os demais membros das tribos. A
glória não estava na riqueza mais no desapego. Um plano simbólico de honra.
Os eventos das
organizações não governamentais precisam estar desvinculados de governos para
que possam discutir os problemas da sociedade civil sem amarras. Desta forma
eles se tornam mais afirmativos, mais propositivos, mais questionadores.
A dificuldade está em viabilizar grandes eventos desta natureza sem o concurso
destes patrocinadores. Eventos desta natureza precisam se libertar das amarras
e do controle das suas agendas de programação.
Entrevista completa
Liliana Peixinho - Como
especialista em água e seus desafios comunitários, como observa
os programas de acesso a
esse bem natural, a nível mundial?
Nizomar Falcão - A água
na língua Tuareg (povo berbere constituído por pastores seminômades,
agricultores e comerciantes habitantes do deserto do Saara) se chama “aman”
(plural sem singular) que geralmente está associado a “iman”, igualmente sem
singular, que significa “alma” e que pode ser traduzida como vida, dando origem
ao adágio popular “água é vida”. Este enunciado é frequentemente seguido de
“akh isudar” (leite da nutrição ou leite que nos alimenta). Esta pluralidade
testemunha a importância da água para regiões áridas, semiáridas e desérticas
do planeta e a sua natureza livre.
No semiárido brasileiro,
a água, está no imaginário popular, por conta de sua eterna busca, seja ela
transportada no lombo de um jumento para as atividades domésticas, que carregam
ancoretas (20 litros), às vezes substituído pelo boi para atendimento coletivo
por meio de carro-pipa (600 litros).
Mulas e jegues são
aliados na caça e distribuição d’água em cidades do interior Foto: Liliana
Peixinho
Nas zonas semiáridas, a
água não forma grandes sulcos na terra para escoamento da água das chuvas. Os
rios são muito diferentes daqueles existentes nas regiões mais chuvosas, como é
o caso dos rios Amazonas, Paraná, Madeira-Mamoré, Purus, Tocantins etc. No semiárido
brasileiro, se destacam os rios perenizados pelos grandes barragens, como é o
caso do Jaguaribe e Piranhas-Açu. A grande exceção é o rio São Francisco,
considerado como o rio da Integração Nacional pelo fato de aliar o Sudeste e o
Centro-Oeste com o Nordeste.
Pelo exposto pode-se
admitir que os modernos programas de oferta de água às populações estão em
desacordo com o código dos costumes, na medida em que a água deixou de ser um
bem livre, um direito, para ser um negócio. Quanto menos água mais caro ela
custa. É a lei da oferta e da procura da economia.
Leito de rio seco –
Sertão da Bahia entre Cansanção e Monte Santo
LP- O planeta Terra é em
sua parte maior, água. Porque tantos problemas em garantir o uso com eficiência
e equidade?
NF -O problema de
escassez da água, em nível mundial, é decorrente de condições geográficas e
econômicas. Isto faz com que aproximadamente 2 bilhões de pessoas tenham acesso
limitado a água de qualidade. A problemática se acentua com as manipulações
jurídico-econômicas. Em vez das instâncias governamentais administrarem os
recursos hídricos pela ótica da “demanda”, optam fazê-la pela “oferta” como um
modo de aumento da arrecadação financeira pelas empresas públicas e privadas.
Isto se insere numa lógica, internacional, que atribui à água um valor
econômico. As ferramentas de outorga e cobrança são modeladas e
formuladas orientando-se exclusivamente pelo controle econômico, como
argumento de uso racional.
A água usada pelos
índios, in natura, antes da chegada da “civilização” era um bem da natureza,
tornou-se uma mercadoria pelas ações antrópicas. Ao se fazer esta transição,
quebrou-se uma regra universal: aquela na qual os rios e as florestas eram
sagradas e possuíam altíssimo valor, mais não tinham preço.
Com a degradação dos bens
naturais, a água adquiriu um valor de troca e incorporou a precificação. A
eficiência tem a ver com competência técnica. A equidade com decisão política.
Reservatórios, como o do Castanhão
– Ceará, com baixos níveis d’água
LP- Em 2001, o Movimento
AMA - Amigos do Meio Ambiente, entregou na Unesco, em Paris, o dossiê Rio São
Francisco, com informações sobre o seu estado de agonia, e ao então, desejo de
reivindicar o título de Patrimônio Natural. De 2001 para cá a situação do Velho
Chico, em processo de degradação contínua, só piora. Seja em escassez,
poluição, esgotos jogados diretamente nas águas, desmatamento, falta de
tratamento, problemas de garantia de acesso ao que restou, para quem mais
precisa: os ribeirinhos. Em paralelo, observamos caudalosos volumes de recursos
alocados em nome do projeto de Transposição, cujas obras inacabadas se
arrastam, por anos e anos, desde a proposta da transposição, por volta de 2005.
Qual o sentido e a viabilidade de projetos como esse, para garantir água a quem
prometido?
Mobilização nacional em Cabrobó, Pernambuco, Outubro de
2005, pela Revitalização do rio São Francisco, contra o Projeto de
Transposição.
Entre a Capela da Fazenda São Sebastião, e a casa da família
de Dona Isaura e seu Lídio, em Cabrobó, milhares de pessoas se espremiam para
pedir a Revitalização do Velho Chico.
Caravanas
do Nordeste e de todo o Brasil chegaram até a Fazenda
São Sebastião, Cabrobó- Pernambuco, para a mobilização da água vida da vid
Ribeirinhos,
agricultores, pais de famílias não mediram esforços para viajar, em paus de
arara, até Cabrobó
Animais mortos de sede nas estradas à procura d’água
NF -A operação da Polícia
Federal “Vidas Secas” revela que o discurso inflamado de transposição das águas
do rio São Francisco, para o Nordeste setentrional, é apenas uma falácia. O que
parece é que por trás desta “panaceia” existe um grande “lobby” de consultores,
empreiteiras e políticos desonestos. O conluio de autoridades com estes grupos
de pressão influenciam os espaços decisórios dos profissionais do poder
público, que aprovam aditivos aos contratos em desacordo com as finalidades
técnicas. Estes aditivos superfaturados embutem os recursos destinados aos enriquecimentos
ilícitos e ao financiamento de campanhas eleitorais. É a indústria da seca
renovada, reinventada. Deste modo é uma conspiração que penaliza, não somente
as pessoas que precisam da água das bacias doadoras, mas também das bacias
receptoras, que tem que pagar um preço abjeto.
LP- Quais as origens e os
efeitos de áreas desertificadas Brasil e outros países, Planeta Terra afora? O
que deve ser feito para evitar, mitigar?
NF -A desertificação é um
processo de modificação ambiental promovido pelas ações antrópicas que leva à
formação de uma paisagem árida ou a um deserto, ocasionadas pelo manejo
inadequado dos recursos naturais. Ela também é fruto de uma inconsequência
ideológica que atribuía às grandes áreas preservadas do semiárido brasileiro a
denominação de “latifúndios improdutivos” como se preservar a natureza não
fosse uma produção. Ao fracionar estas áreas impróprias para agricultura, ao
retirar a vegetação que protegia os solos rasos, ao provocar queimadas que
exterminavam a flora e a fauna, acabaram por contribuir profundamente para o
fenômeno de desertificação.
Terra esturricada onde
nem o umbuzeiro, Rei da Seca, sobrevive.
As práticas mitigatórias
tem que estar embasadas em práticas tradicionais e em conhecimentos étnicos das
populações residentes atingidas pelos processos degradantes. As intervenções do
Estado não podem atropelar a organização cultural e social no sentido de
possibilitar a convivência com o semiárido. Para mitigar as atividades humanas
é recomendável deixar estas áreas em pouso para sua recuperação. Cabe aos seres
humanos subsidiar a natureza, numa reciprocidade para com o ambiente,
remunerando as pessoas dependentes destes espaços pelo “lucro cessante”
(reparação dos danos materiais efetivamente sofridos por cessarem os benefícios
do espaço geográfico).
A mitigação destas áreas
passa pela recuperação do ecossistema caatinga - um bioma único, por um esforço
para recompor aquilo que foi degradado, principalmente, pelo binômio
boi-algodão. Mitigar agora, significa, reaver as “áreas latifundiárias
improdutivas” pela adequação destes territórios a sistemas agrosilvopastoris,
pela implantação de matas ciliares, pela construção de barragens de sedimentos
para conservação das bacias hidrográficas, pela intocabilidade das fontes naturais,
pela construção de cordões de contorno etc. Enfim, temos que fazer o caminho de
volta.
Sem mata em volta da água
o ambiente fica insustentável, sem vida.
A complexidade aumenta
pelas mudanças climáticas que estão promovendo uma alteração em escala global
dos fenômenos atmosféricos e que tem impacto direto sobre os planos de combate
à desertificação. Nesses novos tempos, não basta apenas mitigar, é necessário,
também, avançar sobre medidas adaptativas.
LP - O Brasil pratica a
cultura da geração de energia, em hidroelétricas, em larga escala. Num pais com
tantas outras fontes alternativas os custos sociais da exploração dessa matriz
natural não tem sido desproporcional aos ditos ganhos econômicos, com perdas de
ponta a ponta, para comunidades como: indígenas, quilombolas, pequenos
agricultores?
NF -Se antes a energia
hidroelétrica era praticamente a única forma de se produzir energia em larga
escala, hoje não é mais imprescindível, desde que exista uma decisão de mudar a
matriz energética do Brasil. As energias renováveis, por exemplo, o álcool,
usado maciçamente para abastecer a frota de veículos do Brasil, contribuiria
decisivamente minimizar os efeitos sobre o clima e a poluição dos grandes
centros. Substituir a matriz fóssil pela bioenergia, evitaria que milhões de
toneladas de CO2 fossem lançadas diariamente no ambiente.
A região semiárida do
Brasil, com uma posição privilegiada em relação ao equador, propicia uma
condição extraordinária para produção de energia solar, pela angulação em que
os raios solares atingem a superfície deste amplo território.
Energia alternativa solar no lugar de hidroelétricas precisa ser
potencializada
A imensa costa brasileira
(aproximadamente 5.000 km) podia ser amplamente explorada para produção de
energia eólica, assim como, o próprio oceano atlântico, entre os estados do Rio
Grande do Norte e Ceará, que não possuem regiões abissais, podiam ser
aproveitadas para geração de energia, no mar, sem contar a energia das ondas.
No âmbito dos pequenos
agricultores muito pode ser feito pelo aproveitamento dos “cataventos”, dos
biodigestores e da biomassa, aí incluídas a questão do aproveitamento dos
aterros sanitários dos centros urbanos. Parece-me que falta decisão política.
Cataventos e irrigação alternativa para agricultura
sustentável
LP- O que de fato o
Brasil, e países engajados em acordos internacionais para garantir a água como
fonte da vida, estão a propor fazer, atualmente, para encarar os desafios em
pauta no mundo?
NF -A presença ou
ausência de água em um território, a sua abundância ou escassez, são razões que
ao longo dos séculos tem determinado a história dos assentamentos humanos, sua
permanência ou nomadismo. Na relação, dinâmica e instável, entre água e o
território circundante deve-se procurar as razões para a escolha daquele lugar
pelo gênero humano para se fixar. Um lugar de vida, mas também da morte.
Leitos secos, terra sem
verde, sem vida, desmatada.
A história do lugar
coincide com a história dos povos que a habitam, de tal modo que a terra
adquire a capacidade de representar os próprios indivíduos, o seu progresso e a
relação com a natureza. É por isto, que a água foi considerada, ao longo dos
séculos, um recurso do qual se deve procurar usar da melhor maneira possível,
de acordo com a sua disponibilidade no tempo.
Água e uso em harmonia
por comunidades indígenas
Questões cíclicas da
água, como excesso ou escassez, qualidade e regularidade (princípio de
segurança hídrica), são atualmente problemas conexos a novas problemáticas,
como o aumento do crescimento demográfico, o crescimento das atividades civis,
particularmente os assentamentos urbanos e os sistemas produtivos, a enorme
demanda de energia, a preservação do ambiente (lâminas ecológicas).
Exposição fotojornalística SECA SERTÃO ADENTRO
Isto exige que sejam
definidas políticas e estratégias por uma Gestão Sustentável da Água,
necessidade a qual, verdadeiramente, não estamos ainda em condições de dar
respostas plenamente satisfatórias, nem sob a escala local e muito menos em
escala planetária. O modelo cultural e produtivo dominante foi até agora
centrado simplesmente na identificação do “desenvolvimento” (modelo de
progresso baseado na exaustão dos recursos naturais), com o crescimento
dimensional quantitativo, no qual se enfatiza a escassez e as necessidades,
sempre de forma superestimadas, como forma de obter mais recursos hídricos.
Agronegócio
insustentável, criminoso, venenoso!
Não existe uma busca por
geração de produtos menos consumidores de água, mais por mais água, não importando
a que distância ela esteja, fazendo com que sejamos eternos caçadores de água.
O agronegócio desperdiça cerca de 60% de água
A partir dos anos
setenta, do século XX, na comunidade internacional, tem emergido claramente uma
consciência dos limites dos recursos hídricos e uma distinção entre
“desenvolvimento” e crescimento. Consciência que vem gerando uma série de ideias
de respeito à natureza e aos recursos naturais, de uma necessária e justa
solidariedade na gestão e distribuição.
Protestos contra Belo
Monte
Este quadro de mudança se
reflete na legislação (nem sempre justa) em matéria de tutela, seja da água,
seja do território, e o novo papel e a função dos entes e das estruturas de
gestão dos recursos hídricos. Sempre mais ampla é a percepção da complexidade
dos fenômenos conexos e a consciência da profunda relação existente entre as
variáveis que determinam os fenômenos físicos e os aspectos socioeconômicos
associados ao ciclo hidrológico.
Degradação ambiental para
energia hidroelétrica- Belo Monte
Agora, amplamente mais
compreendido, as tentativas atuais são de gerar níveis satisfatórios de
planejamento e gestão do recurso água, a partir de sua quantificação, no tempo
e no espaço. As premissas levam em consideração o monitoramento dos componentes
do balanço hidrológico, entre eles as chuvas, os deflúvios mensuráveis nas
seções dos cursos de água, as perdas devido à evaporação, a identificação e a
evolução dos aquíferos subterrâneos, os reservatórios superficiais, os pontos
de consumo etc., mediante avaliação probabilística do comportamento do ciclo
hidrológico.
Desde sempre os homens
sabem que o excesso de chuva ou de seca, podem ser causa de catástrofe e,
portanto, existe sempre o problema de observar, medir e compreender os eventos
de chuva e os seus efeitos sobre o território. A ciência hidrológica, entre
eles a engenharia, nasceu com a tarefa de estudar os eventos meteóricos e a
circulação da água no ambiente.
Enchentes podem triplicar
nos próximos 15 anos.
LP - Não seria mais sensato investir em prevenção/educação, em
detrimento de mitigação de efeitos criminosos, como observamos, a exemplo do
rompimento de barragens, como em Mariana, Minas Gerais?
NF - Eventos
catastróficos como o que aconteceu no rio doce é o efeito colateral do “desenvolvimento”.
Os governos, na sua ânsia, de promoção do “crescimento” acabam permitindo ou
relaxando nas medidas de segurança, protetivas e mitigatórias. Acabam
permitindo construção de barragens ou outras obras de engenharia em locais de
perfil geológico incompatível.
Os processos naturais e
as atividades humanas, mediante modificações calamitosas da superfície
terrestre, exercem pressões insustentáveis sobre o ambiente. Os estudos de
impacto ambiental acabam sendo desleixados no tocante às medidas de prevenção e
mitigação.
Rompimento da Barragem
Vale/Samarco em Mariana: exemplo de descaso. Foto internet
O cuidado dispensado a
estes aspectos deve estar inserido no contexto do progresso sustentável de cada
território. Deve ser um modelo que se baseie no princípio de integração entre
ambiente e progresso, orientado a obter critérios de equidade, precaução,
prevenção, partilha das responsabilidades, reciprocidade ambiental e
participação. O uso dos recursos naturais deve ser parcimonioso, especialmente,
daqueles não renováveis, de modo a não danificar de maneira irreversível o
patrimônio natural ou cultural. Responsabilização e participação devem serem
compreendidos como métodos de educação.
LP - O que existe
funcionando, de fato, mundo afora, entre instituições especializadas, para não
sujar a água, que temos em abundância, como na América do Sul/Brasil/Amazônia,
e pagamos caro, para limpar o que não deveria sujar?
NF -As crises hídricas
recorrentes nas diversas regiões está intimamente associado ás secas, mas
também, a poluição por conta da descarga de produtos contaminantes derivados
das atividades humanas, seja, industriais ou agrícolas.
O que de mais
relevante, ao meu modo de ver, que existe engatinhando no mundo, é a questão do
reuso de água. Embora seja um assunto cercado de preconceitos, ela é o futuro.
Considerando que a água é um recurso finito e que os usos e as poluições são
crescentes, não existem muitas alternativas.
Esgotos a céu aberto
contaminam pequenas nascentes
A adaptação dos cultivos
para consumo de menor quantidade de água tem limitações; logo, voltar-se para o
uso de águas residuais, como se fazem nos países mais áridos do mundo. É para onde se caminha. É preciso
despir-se de prejulgamentos e continuar avançando. Processos de evaporação e
condensação de águas residuais é seguro. Menos precisaremos usar água de reúso,
tanto quanto formos capazes de usar racionalmente a água doce disponível no
planeta. Um princípio fundamental é: mais importante do que limpar é não sujar.
Caatinga com leito seco de rio cheio de lixo
LP - O desperdício, seja
público ou privado, é paradoxal, em meio a tantos desafios para garantir
consumos conscientes. O que temos como exemplar, no planeta, para enfrentar
isso?
Ações educativas em exposição itinerante -Movimento AMA
-Amigos do Meio Ambiente,
O desperdício é uma
questão cultural; logo, em termos de desperdício entendo que as experiências
internacionais nem sempre são adequadas ou adaptáveis a outras culturas. O
desperdício é uma visão, às vezes sim, às vezes não equivocada, de abundância.
Em muitas culturas uma forma de controle do acúmulo da riqueza para evitar a
desigualdade econômica. Um antagonismo do capitalismo.
Informações para as
comunidades como instrumento de mudança
Desperdício d’água é
criminoso em meio a tanta falta
A dona de casa anda
quilômetros para arranjar um poça d’água para lavar roupa
O potlatch é o fenômeno
cultural mais relevante. Era uma cerimônia dos índios americanos, na qual se
praticava uma troca agressiva e perdulária de bens. Uma destruição ritual de
bens acumulados como forma de demonstração de superioridade. A superioridade
estava em não possuir valores maiores que os demais membros das tribos. A
glória não estava na riqueza mais no desapego. Um plano simbólico de honra.
No plano prático, a
concepção de agricultura ecológica é a mais importante, por que insere a
reciclagem de nutrientes e na integração e harmonização dos ecossistemas. Dá
dinamismo às cadeias tróficas.
Sem agrotóxicos,
agricultura orgânica respeita o solo e a saúde de quem come
Falta de acesso á água causa prejuízos e culturas são
perdidas depois de muito trabalho duro
LP - Que avaliação faz
dos eventos: 02 Encontro Intercontinental sobre a Natureza, Diálogos
NF - Os eventos das
organizações não governamentais precisam estar desvinculados de governos para
que possam discutir os problemas da sociedade civil sem amarras. Desta forma
eles se tornam mais afirmativos, mais propositivos, mais questionadores.
A dificuldade está em viabilizar grandes eventos desta natureza sem o concurso
destes patrocinadores. Eventos desta natureza precisam se libertar das amarras
e do controle das suas agendas de programação.
Painel de evento com logomarcas corporativas de governo,
empresas e instituições patrocinadoras, apoiadoras, parceiras.
Liliana Peixinho * -
Autora da série especial de 12 matérias “SECA SERTÃO ADENTRO ” –
Finalista Prêmio Jornalismo – 2013.