Wednesday, February 19, 2014

27/02/2013 17:15:10

Diário de estrada

Liliana Peixinho, especial para o Mercado Ético

Repórter percorre por dois mêses terras nordestinas flageladas pela seca / Fotos:Liliana Peixinho
Saí dia 4 de dezembro de Salvador rumo à seca do Nordeste adentro. Antes da saída, a cada mês, durante o ano de 2012, esperava as notícias de chuva. Esperançosa de que ela estivesse chegando e cheia de dificuldades para viajar num carro velho, sem estrutura e sem apoio, fui adiando a jornada. Mas chegou um dia em que juntei tudo e pensei que chegava a hora de partir. O quadro de dificuldades seria mais um combustível ao desafio de ver de perto o sofrimento de pessoas que estamos acostumados a ver somente nos noticiários, onde trilhas sonoras e imagens lembram mais a literatura e o cinema do que a realidade de vidas que sucumbem - dia a dia, hora a hora, mês a mês, ano a ano, décadas a décadas - em ciclos perversos de teste de resistência, fé e coragem para garantir a vida com a dignidade que os nordestinos aprenderam, geração a geração.
Noites de calor
A primeira parada foi na região de Senhor do Bonfim, onde tem guarida de parentes para hospedagem. A idéia era conviver com eles e como eles, sentindo, na pele, no coração e na alma, os problemas que os habitantes do sertão enfrentavam. Instalada e com as contrapartidas devidas de ajuda em alimentação e afazeres domésticos e da roça, levanto, como todos, bem cedinho, com as galinhas. Ainda bem que amanhecia, porque as noites eram difíceis pra dormir, sem ventilação, com muito calor, quartos com janelas apertadas, sem telas de proteção de mosquitos, besouros e outros insetos que sugam seu sangue a noite inteira, sem mosquiteiros e estruturas mínimas de conforto e proteção contra o calor, insetos e outros bichos, como baratas e ratos. Isso mesmo, sofri com a demora de ver o dia nascer, mesmo sabendo que não teria o direito de dormir de dia, afinal havia lançado um desafio a mim mesma: resistir, com o sofrimento coletivo.

Terra castigada pela seca no sertão nordestino / Fotos: Liliana Peixinho
Cansada, com dores e muita coisa pra ajudar o povo a fazer, não tinha como ficar na cama. Tinha mesmo era que levantar com o sol nascendo e começar a labuta: ajudar a fazer o café, beiju, cuscuz, lavar pratos, pegar água, pegar peso, cuidar de animais e crianças, tomar banho de cuia com água não limpa e super racionada. Dias como esses integraram minhas atividades cotidianas na viagem de dois meses sertão adentro, rachando o pé, queimando a pele, esquentando a molera e construindo relações.
Logo após o café da manhã, as aves vão descendo das galhas do umbuzeiro, que se espalham pelo terreiro para ciscar e furar aqui e ali, ora um umbu verde escuro, carnudo, durinho, para matar a fome; ora um outro umbu, amarelinho, molinho, suculento, para matar a sede, já que a água não está disponível em vasilhas.
Da região de Senhor do Bonfim, em lugares como Jaguarari, Igara, Umburana, Passagem Velha, Tijuaçu, Filadélfia, segui viagem rumo a Itiúba, Euclides da Cunha, Cansação, Quijingue, Cícero Dantas, Adustina. Na divisa da Bahia/Sergipe, com o carro quebrado, ajudei uma amiga que me deu guarida a dirigir seu carro até Sergipe, onde iria até a capital Aracaju fazer exames médicos. Sabendo do meu compromisso com a pauta da seca, fizemos paradas em zonas rurais, onde pude observar, conversar e fazer fotos de áreas muito degradadas pela falta de chuvas.

Zona Rural, em Euclisdes da Cunha
Na viagem de volta, fui para Adustina, onde meu carro era reparado. Então segui viagem rumo à região de Monte Santo, passando por cidades como Cícero Dantas, Cipó, Coité, Tucano, Fátima, Cansação, Pedra Vermelha e Bebedouro. Na saída de Euclides da Cunha, parei para pedir uma informação num ponto de mototaxi. Ali, uma mulher aproveitou para me perguntar: “a senhora pega passageiro, porque minha filha vai pro lado que a senhora quer ir. Aí ela já lhe ensina”. Eu, que não costumo dizer não, quando vi a mocinha de uns 17 anos com uma criança de colo, pensei comigo que seria uma boa oportunidade para ajudar alguém em necessidade. Mas lembrei do policiamento das estradas e dos problemas que poderia me causar dar carona a uma adolescente com uma criança, sem que o automóvel esteja equipado com a tal cadeirinha exigida. Foi com o coração partido que pedi perdão e respondi que sem a cadeirinha as coisas poderiam complicar, e segui viagem com o pensamento na cena deixada para trás.
Mais ou menos uma hora depois da zona urbana, já na estrada rumo a Monte Santo, depois que sai da zona rural, encontro uma senhora com uma sombrinha, cheia de sacolas. Paro o carro e pergunto:
- “Boa tarde, a senhora quer uma carona?”
- “Oh mia fia, você caiu no céu, foi? Tava aqui já passando mal, com tanto calor e peso nas mãos” – responde ela.
- “Pois então entre e vamos, que eu levo a senhora. Vai pra onde mesmo?”

Dona Vanda (de vestido listrado) mostra à repórter o relógio de água sem uso
Enquanto ela responde, tiro as sacolas de alimentos e o isopor de água do banco da frente, passando tudo para o banco de trás, bem rápido, para não empatar o trânsito. Ela entra no carro, já sorrindo de felicidade. Disse a ela que era uma jornalista pesquisando sobre a seca. Ao ouvir aquilo, a mulher, que se chamava Maria Macedo, 48 anos, começou a falar, de forma espontânea, sobre todos os problemas que vivia devido à falta d’agua.
“Temos encanamento em casa tem pouco tempo, mas, por isso, não temos direito de nos inscrever para construir a cisterna. Ficamos três meses sem água, que não cai na torneira, porque tem que ir primeiro aos outros lugares antes de chegar aqui no tanque. Pra conseguir um pouco d’água, a gente vai na cisterna do vizinho, pega 2 ou 3 baldinhos para beber e cozinhar. Para as outras coisas - lavar prato, roupa e tomar banho - a gente vai nos tanques de barro, pega uma laminha e côa num pano pra diminuir a sujeira. No dia que caiu água da torneira eu encho todas as vasilhas, panelas, baldes, caldeirões e ficamo regrando, usando só para beber e cozinhar.”
(Mercado Ético)

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